Elísio Estanque
Centro de Estudos Sociais - Universidade de Coimbra
O aumento imparável da mediatização das sociedades ao longo das últimas quatro décadas vem colocando novos desafios à expansão da esfera pública e da cidadania. Como sabemos, o exercício pleno da cidadania depende largamente da conjugação entre o papel dos média e a acção dos novos movimentos sociais, factores decisivos na consolidação das sociedades democráticas.
Se entendermos a democracia no seu sentido mais profundo, teremos de a conceber como um processo em que os diversos agentes e protagonistas do debate público contribuem para estender a esfera da cidadania – e portanto alargar as formas de intervenção cívica e política – para além da acção estritamente institucional. É assim que o papel dos média, por um lado, e o dos movimentos sociais, por outro, são elementos fundamentais desse processo. Reflexo do descontentamento das populações e comunidades, os movimentos sociais, embora podendo revelar um carácter mais espontâneo ou mais organizado, mais efémero ou mais permanente, são uma das principais formas de expressão da consciência crítica das sociedades e da sua capacidade de agirem sobre si próprias. Em diversas épocas e contextos históricos os movimentos sociais foram os principais promotores da mudança social e da ruptura política. Mas as suas capacidades de mobilização dependem sobretudo da visibilidade das iniciativas, pelo que, quer na fase de denúncia dos problemas em causa, quer perante as iniciativas e condições em que decorre a acção, a informação e divulgação por parte da comunicação social podem decidir o seu sucesso.
Pode estabelecer-se uma distinção entre movimentos de “velho” e de “novo” tipo, sendo que a ideia de “movimento” se situa no polo oposto à ideia de ordem ou “instituição”. Enquanto os velhos movimentos, como o movimento operário, pugnavam por uma nova ordem política (o socialismo) os chamados novos movimentos sociais (NMSs), que emergiram nos anos 60 no Ocidente, para além das bandeiras utópicas por que pautaram o seu discurso, tiveram uma incidência no imediato, pressionando os poderes e as instituições existentes, questionando as fronteiras entre o Estado e a sociedade civil. As lutas que conduziram pela defesa da causa ecológica, da paz, dos direitos das mulheres, do respeito pelas minorias, da democratização do ensino, etc., combinaram o radicalismo e por vezes a espectacularidade das acções com o sentido pragmático das metas a atingir e a atenção que prestaram ao papel dos média.
Na era da globalização em que hoje vivermos, os pólos global e local estão estreitamente articulados. Porém, se nos anos 60 e 70 do século passado se lançou o slogan “pensar globalmente, agir localmente”, neste início de milénio, talvez faça mais sentido inverter os termos e dizer que é preciso “pensar localmente e agir globalmente”, pois a fantástica capacidade e rapidez com que a comunicação circula no mundo permite com muito maior eficácia construir redes e estratégias de acção a partir do local, mas que rapidamente podem ganhar um impacto global. Os actuais movimentos e ONGs que lutam por uma globalização alternativa e solidária corporizam essas articulações e ajudam a construir novas formas de democracia participativa, de que a democracia representativa pode beneficiar, visto que ambas de complementam.
Neste processo, o “Ciberespaço” representa uma revolução digital e material, que contém uma infra-estrutura (as redes de computadores) em rápida expansão global e uma superestrutura (a realidade virtual) presente nos ecrãs dos computadores e da televisão. A criação de uma espécie de oportunidades de “Presidência doméstica sobre o Mundo Global”. O utilizador imerso num mundo de dados e informação é capaz de captar todos os saberes, viajar sem limites num espaço onde a realidade virtual é mais forte do que a realidade concreta. É uma hiperficção, ao mesmo tempo hiperrealista que permite a qualquer mortal realizar os sonhos burgueses mais ambiciosos. É uma imagem ideológica, invertida, de um mundo ficcionado, que se transforma numa fuga surreal às identidades fixas e aos constrangimentos e pressões do dia-a-dia, na vida doméstica, no emprego, nas instituições. Uma forma de “expulsar” das preocupações diárias os problemas do mundo real. Embora o mundo pareça possuir um sentido transparente. Esta espécie de “Ágora” electrónica é, mais do que uma utopia, é uma distopia, pois tem efeitos práticos, embora se trate de um mundo de ilusões/ficções ajuda a manter o poder dos que controlam o mundo.
A Internet e a televisão tornaram-se a “Ágora” electrónica em que as pessoas se sentem representadas, projectadas sem o risco da convivência ou experiência face-a-face. Tudo isto provoca a homogeneização cultural. Mas a cultura é a luta contra a uniformidade, é a diferença. Para alguns (Ritzer, 1995) a especificidade cultural, de regiões e países, está em risco, mas para outros a globalização produz, por um lado, homogeneidade, e por outro diversidade. São duas perspectivas e tendências opostas sobre o que está a acontecer. Os “média electrónicos” não são o ópio do povo (Appadurai, 1997), são um campo fértil de imaginação, criatividade, ironia, resistência selectiva.
Seja como for, o papel dos NMSs no aprofundamento da democracia passa pela sua capacidade de utilizar estes meios num sentido emancipatório. A luta por uma globalização mais humanizada e regulada de acordo com as exigências de justiça social é um requisito urgente para revigorar a democracia e promover o bem-estar social. E da capacidade de conjugar a acção dos novos meios electrónicos de comunicação com os movimentos da sociedade civil dependerá, em larga medida, o êxito dessa luta.