Sociologia na UAlg

14.11.05

"Sur le Peugeut, le feu"

Na noite de 31 de Dezembro de 2004, por volta das 11 da noite, apanhei a linha 6 do Metro na direcção da torre Eiffel. Lá dentro, esperava-me tudo menos um começo festivo da noite de Reveillon.
Todas os comboios vinham literalmente apinhados de bandos de jovens, na maior parte provenientes dos subúrbios parisienses.
Acabei, inadvertidamente, por ser testemunha de uma atmosfera que para mim tinha tanto de inaudito como de indescritível. A agressividade e a violência contra pessoas e objectos atingiu ali os limites do intolerável.
Enquanto durou a viagem - que para mim foi mais curta, pois saí algumas estações antes do destino - aquelas centenas de indivíduos entretiveram-se a ofender, danificar e destruir o que estava à sua volta: bancos, vidros, portas, lâmpadas, gente... rigorosamente tudo.
Lembro-me, com revolta, de ter assistido à entrada de duas turistas americanas que, depois de fechadas as portas, foram vilipendiadas, humilhadas, apalpadas, rasgadas e o mais que possa ser feito por cinquenta homens no percurso entre duas estações de Metro.
Tudo isto, claro, com a banda sonora das as inevitáveis palavras de ordem: «nique ta mère!», que me abstenho de traduzir.
Não devo ter mais nada em comum com Mr. Sarkozi mas confesso que, a trinta centímetros destes comportamentos, uma das expressões que me vieram ao espírito foi: «c’est de la racaille!».
Expressão que não significa «escumalha», como os meios de comunicação social portugueses têm traduzido e que tem, em português, inegáveis conotações racistas, mas sim «canalha».
E foram efectivamente condutas canalhas aquelas a que assisti, como é canalha uma grande parte da onda de violência que tem assolado a França nos últimos dias. Não se trata, como em Maio de 68, de gritar: «sous le pavé, la plage» mas antes: «sur le Peugeut, le feu».
A questão não parece estar no facto de um ministro da Administração Interna ter utilizado aquele tipo de linguagem para se referir a meia dúzia de energúmenos.
O problema parece-me residir, por um lado, na circunstância de essa adjectivação ter vindo de um responsável político e por isso, depois de mediatizada, ter tido as consequências que teve; por outro lado, no facto de o país da Revolução e dos Direitos Humanos estar a empurrar um número significativo dos seus jovens, precisamente, para a violência canalha.
Mesmo com a indignação que me provocaram os acontecimentos do Metro, ao confrontar-me, olhos nos olhos, com aqueles jovens, não consegui abandonar o olhar (pretensamente) sociológico que às vezes transporto.
O que vi foram olhares, gestos e comportamentos de quem nada tem a perder. E quem nada tem a perder é porque já nada tem.
São diversas as explicações que têm vindo a ser avançadas para dar conta dos acontecimentos ocorridos em França nos últimos dias.
Parece-me, contudo, pertinente apresentar uma outra perspectiva: aquela a que as ciências sociais têm vindo a designar por dualização das sociedades pós-industriais.
Paradoxalmente, não é só no terceiro mundo que se acentuam as desigualdades entre os que estão do lado «bom» da sociedade e os que se encontram do lado «mau».
Enquanto há trinta anos as sociedades industriais europeias concediam um lugar e uma identidade social a todos - dominados ou dominantes, imigrantes ou autóctones -, a sociedade dual separa dois subconjuntos que se separam inexoravelmente.
Por um lado, as classes médias e superiores que participam no emprego estável e no consumo, que acedem ao lazer e à cultura, aos sistemas de saúde e de educação e à habitação em boas condições: o mundo dos que estão in.
Por outro lado, o mundo da vulnerabilidade, dos bairros de habitação social, da discriminação, da precaridade, da «dupla pertença étnica» e da falência das expectativas de futuro: o mundo dos que estão out.
Não é o confronto entre o Islão e a laicidade que estão aqui em causa, nem sequer o conflito de classes típico das sociedades industriais. Estes comportamentos aparecem precisamente porque o sentido do conflito de classes se esvaziou.
A violência e a agressividade brutais com que os jovens das sociedades pós-industriais se manifestam emergem, entre outros factores, das questões identitárias, da profunda discriminação e da exigência de invisibilidade social a que estão sujeitos aqueles que se chamam Mohamed, Mbolo ou Fatma.
Bem como da sensação de impotência que sentem, relativamente às possibilidades de uma real mobilidade ascendente e de uma saída efectiva dos bairros de habitação social onde nasceram e cresceram.
As expectativas que a sociedade de consumo lhes criou foram goradas; não só nada têm, como sabem perfeitamente que, daquilo que lhes prometem todos os dias, nada virão a ter.
Não sejamos ingénuos ao ponto de pensarmos que Portugal está imune a este tipo de disrupções sociais.
No momento em que escrevo já arderam automóveis na Bélgica e na Alemanha. O modo como estamos a tratar social e politicamente as (impropriamente) chamadas «segundas gerações», a estigmatização dos bairros a que estão relegadas, a discriminação quotidiana e a precaridade no emprego à qual estão sujeitas, a vulnerabilidade face à exclusão com que se confrontam, não auguram nada de bom para os próximos tempos.

João Filipe Marques


 
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